quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Vê lá, vê lá companheiro: do passado, do presente e do futuro

Nos últimos anos, em todas as Festas do Avante tenho ouvido esta música. É impossível não me emocionar cada vez que a oiço. Cantada por vozes que a sentem, que sabem da dor, das angústias, das perdas. Digo isto, no entanto sei que não lhes conheço as dores pessoais, as injustiças de que foram alvos, nem as tristezas. Não conheço as suas vidas, nem sei o quanto as suas feições envelhecidas podem esconder de bom e de mau... Mas emociono-me, sinto uma tristeza, uma melancolia, uma frustração, uma injustiça... sinto também uma leve esperança, porque quem canta consegue sempre ir um bocadinho mais além... consegue passar a sua mensagem, consegue fazer-se ouvir...

Isto são músicas da terra, músicas das gentes, do povo, faz parte do nosso legado histórico-cultural. Mas é mais que isso, é um alerta sobre as vidas de muito custo, as vidas de trabalho muitas vezes desumano, as vidas de incerteza, vidas acompanhadas permanentemente pela morte. Neste caso, o trabalho das minas, um trabalho perigoso para quem o executa na altura e posteriormente, os casos de doenças (por exemplo doenças oncológicas) em antigos mineiros são muito elevados devido à exposição que estes tiveram a diversos contaminantes.

E qual a razão para estar a falar agora disto? É porque me entristece ver nas redes sociais a grande preocupação que o povo (sim porque eu não conheço pessoas verdadeiramente de elite) têm sobre as possíveis taxas ou impostos aos mais ricos, quando provavelmente nem sequer conhecem ninguém que vá ser taxado. Eu acredito que a grande preocupação se deve ao facto de as pessoas acreditarem que ao se taxar os mais ricos, estes vão ter menos posses e, consequentemente, reduzir o investimento, o que pode pôr em risco diversos postos de trabalho e salários (na grande maioria das vezes miseráveis). A questão é a seguinte, eu prefiro que taxem os mais ricos do que criem mais impostos que não olham para as diferenças socioeconómicas.

Que importância tem no mundo um imposto para quem tem fortunas (impossíveis de amealhar por um trabalhador comum ao longo da sua vida) quando ainda há quem se mate a trabalhar para simplesmente viver?

Eu trago a camisa rota
Lá.lá,lálá,lá,lá,lá
E sangue dum camarada
Vê lá, vê lá companheiro
vê lá.vê lá, como venho eu
Lá.lá,lálá,lá,lá,lá
Lá.lá,lálá,lá,lá,lá
E sangue dum camarada
Vê lá, vê lá companheiro
vê lá.vê lá, como venho eu
Lá.lá,lálá,lá,lá,lá
Lá.lá,lálá,lá,lá,lá

Alguém consegue ouvir isto e ficar indiferente ao sofrimento de vidas de trabalho? Acho que há muita gente por aí que precisa de ouvir algumas músicas para verem que a vida real é mais dura que os impostos que taxam a quem tem fortunas. Os ricos não precisam que os pobres se preocupem com eles, as suas áreas de influência já são demasiado vastas... Vamos importar-nos com aqueles que têm o mesmo que nós e com aqueles que têm menos que nós?


Ainda, para terminar, gostaria de sugerir um livro, um dos melhores livros que já li, Levantado do Chão de José Saramago. Um verdadeiro livro sobre o Alentejo, um verdadeiro livro sobre as lutas diárias do povo.

O livro começa assim:

"O que mais há na terra, é paisagem. Por muito do resto que lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas do ano em que o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em lugares que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou seu último fim. Não é tal o caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivíssimo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos."

 e acaba assim:

"E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal."

Que façamos dos nossos dias, dias levantados e principais para o futuro.

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